Eu sei que havia me comprometido a falar apenas de jogos com uma bela direção de arte voltada para o estilo minimalista e com técnicas de animação diferenciadas, para servir de inspiração para meus colegas de trabalho e profissão. Mas esta semana, eu não venho apenas falar de um jogo, mas de uma história de sucesso de uma pequena empresa de um país sub desenvolvido, cuja obra está conquistando o mundo.
The Witcher é uma série de jogos inspirada pelos livros do escritor polonês Andrzej Sapkowski, que narram as aventuras de Geralt de Rivia, em um mundo de fantasia inspirado por mitologias e contos do folclore europeu, as mesmas que inspiraram Tolkien, Robert E. Howard e tantos outros grandes romancistas do século XX. The Witcher: Wild Hunt é o terceiro jogo produzido pelo estúdio polonês CD Projekt Red e acaba de alcançar mais de 1 milhão de cópias vendidas no mundo inteiro, além de 200 prêmios em conferências, sites e revistas especializadas, além de nota máxima em quase todas as críticas por onde passou.
Da literatura para os jogos
Não consta nos dicionários do idioma polonês a palavra “Wiedzmin”, mas ela seria o masculino de “Wiedźma“, que significa Bruxa, tal qual Witcher é uma palavra nova para o inglês, que seria um masculino de Witch. Em 1986, Sapkowski introduziu o termo em seu conto de mesmo nome na revista Fantastika, um periódico mensal de contos de fantasia e ficção científica. O conto introduzia o herói que viria a protagonizar seus livros, Geralt de Rivia, como um mutante treinado e alterado geneticamente com alquimia e feitiços perigosos para tornar-se um caçador de monstros profissional, tornando-o mais forte, ágil e imune a diversas doenças. Geralt usa de vários conhecimentos técnicos para definir a origem da criatura que caça, seu comportamento e como melhor combatê-la.
As histórias brincam com contos de fadas como Branca de Neve, Rapunzel, entre outras lendas conhecidas, mas sempre envoltas por uma pegada forense de investigação e mistério, onde nada é muito o que parece ser. No mundo de Wiedzmin, os monstros têm uma razão para existir, são frutos de maldições geradas pelos pecados dos humanos. Tal qual as histórias que eram contadas em rodas, de uma mula-sem-cabeça que surge da relação entre uma mulher e um padre, uma alma atormentada ou um cadáver de uma vítima de abuso podem se tornar uma criatura tenebrosa e assombrar uma vila. Pessoas geralmente querem ver seus problemas resolvidos, mas esquecem que foram seus próprios erros que os causaram. Não existe bem e mal ou preto-no-branco nos contos de Sapokowski, apenas escolhas e consequências. Geralt não é nenhum bastião intocável da justiça como Aragorn, todos os personagens tem seus tons de cinza.
No Brasil é possível encontrar dois apanhados dos melhores contos nos livros O Ultimo Desejo e A Espada do Destino, ambos publicados no Brasil pela Editora Martins Fontes.
Após vários contos publicados, dentre eles vários premiados pela seleção anual da revista, em 1994 Sapkowski publicou o primeiro livro da série: Krew elfów (O Sangue dos Elfos, disponível em português pela Editora Martins Fontes), seguido de Czas pogardy (Tempo de Desprezo), Chrzest ognia (Batismo de Fogo), Wieża Jaskółki (A Torre da Andorinha) e concluindo em 99 com Pani Jeziora (A Dama do Lago). Com uma trama rebuscada, envolve intrigas políticas, sexo, ódio racial e outros temas que até então não eram abordados pela fantasia. Exceto por um tal de George R.R. Martin aqui no ocidente, que coincidentemente escreveu seu primeiro livro das Crônicas de Gelo e Fogo: A Guerra dos Tronos em 1996.
Seus livros o levaram de simples escritor de revistas “pulp” a membro da Academia Literatura Polonesa, com várias condecorações por suas contribuições como romancista e contribuinte para o resgate cultural do país. As aventuras de Geralt foram publicadas em mais de 23 idiomas pelo mundo todo, foi adaptado para os quadrinhos pela Dark Horse, ganhou um filme em 2003 e uma série de TV.
Da Polônia para o mundo
Se tirarmos o gosto por literatura, incentivado pelo período de domínio soviético na Polônia, o seu povo tem bastante em comum com o brasileiro, especialmente no que diz respeito ao “jeitinho”. Enquanto o BOOM dos videogames acontecia nas décadas de 80 e 90, brasileiros e poloneses tinham extrema dificuldade para ter acesso aos jogos devido às políticas protecionistas, burocracias e impostos massacrantes. A saída encontrada foi a mesma: pirataria!
A CD Projetk, empresa de distribuição de jogos polonesas, começou suas atividades de forma ilegal, distribuindo jogos piratas no país por disquetes, fitas digitais e até mesmo, pasmem, por ondas de rádio. Aos poucos, passaram a fazer traduções e localizações para o polonês e foram se formalizando. Em 2005, abriram a CD Projekt RED, um estúdio para desenvolvimento próprio de games, e em 2007, abriram o site Good Old Games, onde são vendidos via download jogos clássicos de PC remasterizados e otimizados para novos sistemas operacionais.
No mesmo ano, em parceria com a Atari, a CD Projetk trazia ao mercado The Witcher, a princípio apenas nos PCs, o primeiro game da série adaptado dos livros de Sapkwoski. O jogo foi desenvolvido com base na estrutura de Neverwinter Nights 2, cedido pela Atari, e um baixíssimo orçamento para os padrões da época.
Para introduzir novos jogadores que não leram os livros, nem correr o risco de críticas por erros de adaptação, os produtores escolheram situar o game 5 anos após o último livro, concedendo ao herói Geralt uma amnésia, que o situava junto ao jogador como alguém sendo introduzido àquele mundo. Durante o jogo, você podia fazer tudo o que era corriqueiro do dia-a-dia de um Witcher: caçar monstros, visitar vilarejos, fazer poções, beber, apostar em jogos de azar e até flertar com donzelas, além de se envolver e tomar decisões em tramas políticas e na guerra entre humanos e as outras raças, como por exemplo Anões e Elfos, marginalizados e discriminados pela sociedade.
Mesmo com as boas recomendações da crítica, o game teve vendas medianas, somando a vigente crise que o PC vinha passando como plataforma de entretenimento, e levou cerca de 19 meses para alcançar a marca das 100.000 cópias. A Atari pediu para que adaptassem o jogo para consoles, então anunciaram The Witcher: Rise of the Whit Wolf para Xbox 360 e Playstation 3. Mas o jogo foi pensado 100% na jogabilidade com mouse e teclado e em uma engine que também não suportava a estrutura simples de um videogame. A única saída era refazer o jogo inteiro do zero. Contrataram um estúdio independente e depois de diversos problemas, principalmente financeiros, o projeto foi cancelado juntamente com o contrato com a Atari.
Empolgados pelo relativo sucesso do primeiro game, mesmo com a saída da Atari, a CD Projetk engatilhou com investimento próprio na produção de uma sequência, com uma equipe de 200 profissionais trabalhando por 3 anos de forma engajada e com um orçamento melhor, mas ainda abaixo dos padrões da indústria. Em maio de 2011 chegava ao mercado The Witcher 2: Assassin’s of Kings, que superava seu antecessor em quase todos os aspectos.
Mais uma vez as notas da crítica alcançaram uma média de 90% e o governo da Polônia reconheceu o game como “melhor obra cultural produzida no país” naquele ano. A personagem que faz par romântico com Geralt, Triss Merigold, ganhou a capa da Playboy polonesa em maio, em uma edição comemorativa, e até o presidente dos Estados Unidos Barack Obama foi presenteado com uma cópia do jogo em sua visita ao país.
Mesmo com todo o barulho gerado em cima de seu lançamento, o jogo teve vendas medianas e foi ofuscado pelo lançamento de The Elder’s Scrolls 5 Skyrim em novembro do mesmo ano. (Este que vos escreve, por exemplo, tem 78 horas registradas de jogo em Witcher 2 contra 115 de Skyrim.)
Batendo recordes de mercado
Mesmo com os dois primeiros jogos não vendendo tão bem para os padrões dos grandes títulos da indústria, a CD Projekt seguiu em frente e deu início ao desenvolvimento The Witcher Wild Hunt. Lançado para PCs, Xbox One e Playstation 4 no dia 19 de maio de 2015, bateu o recorde de 1 milhão de cópias vendidas apenas na pré-venda e uma média de 92% no site metacritic.
Tentando colocar a minha empolgação como fã da série de lado e o quanto esperei por esse jogo desde quando concluí seu antecessor, é um jogo de execução técnica impecável. Os gráficos são lindos mesmo na versão de consoles ou em PCs de baixo desempenho, o trabalho de voz dos atores casa perfeitamente com as expressões dos personagens (e finalmente consertaram aquele “olho-morto” que personagens 3D têm em jogos), os controles respondem muito bem e o combate está mais frenético do que nunca.
Embora seja o terceiro game da série e comece imediatamente após os eventos de Assassin’s of Kings, o novo game faz um excelente trabalho em introduzir os jogadores novatos ao mundo de fantasia da série. Você é livre para explorar um mundo vasto de vales, montanhas e florestas ricas em detalhes, povoados pelos mais cativantes habitantes e criaturas perigosas. Há uma infinidade de contratos de monstros para caçar, maldições para exorcizar e todo tipo de trabalho de Witcher. De acordo com os produtores, são necessárias 200 horas de jogo para completar todas as missões secundárias disponíveis.
Ao pegar um contrato de caça, você não simplesmente vai até o ponto X no mapa, mata o monstro e volta pra pegar a recompensa. Você recebe uma pista do local onde a criatura atacou, investiga os traços do ataque para definir sua natureza, prepara as poções ideais para te ajudar no confronto, segue seus rastros com seus sentidos aguçados até o seu covil, para só então entrar em combate. E neste ponto, a CD Projekt acerta em cheio ao trazer o espírito dos livros à série, quando nem sempre tudo é o que parece: neste mundo, são pecados dos homens que geram os monstros, portanto, um nobre que queira te pagar para simplesmente eliminar uma peste pode estar querendo esconder alguma atrocidade cometida por ele. Cada novo contrato é como ler um intrigante conto de investigação sobrenatural.
Você pode até não gostar de RPGs, mas se você curte essa nova onda de fantasia adulta como Game of Thrones e gosta de jogos de mundo aberto como GTA e Red Dead Redemption, “The Witcher Wild Hunt” foi feito pra você. Ou melhor, apenas faça um favor a si mesmo e experimente. Só não venha me culpar pelas horas perdidas de sua vida.